sexta-feira, 3 de abril de 2009

Traído pela perda dos símbolos de pontuação

Na sala inalava-se perfeitamente o suor da parcialidade ponto final Trataram-me como um rato de esgoto vírgula indignamente vírgula com total indiferença aos meus argumentos ponto final

travessão O senhor é um badamerda vírgula repetiram tantas vezes que os seus focinhos que metiam nojo quase reflectiam a minha revolta ponto final Apanhámos a sua carta de amor para a Flor vírgula aquela que está presa na cadeia de Viseu ponto final É bem bonita ponto de exclamação Pena é que esse pedaço de literatura vírgula ironicamente escrito em treze páginas vírgula seja o facto que o trouxe a esta comissão que tem por objectivo impedir que o mesmo seja publicado e publicitado no nosso mundo literário ponto final

travessão Foi parar à choldra por ter feito um aborto interrogação É verdade que foi enganada pelo médico interrogação Pelos vistos o feto não estava deformado vírgula duro golpe vírgula não acham interrogação

O porco do médico aconselhou-a a abortar vírgula disse-lhe que o feto padecia de problemas irremediáveis e que poria em perigo a sua vida ponto final Juntei todo o dinheiro vírgula ela quis ir sozinha e acabou por ser denunciada vírgula não sei por quem reticências e final da história ponto final
Nunca conseguimos provar a sua inocência vírgula o médico tinha montes de “guito” e conseguiu escapar sem levar na boca ponto final Tudo teria corrido bem no final não fora o facto de o Ministério Público ter provado que o feto estava em plena saúde ponto final

travessão Mas que têm vocês a ver com esta história macabra interrogação Não basta o sofrimento já causado interrogação A carta que escrevi e que vocês detêm ilicitamente em vosso poder é para a Flor vírgula é a minha vergonha cravada nas poucas palavras que sei pronunciar vírgula é o pouco mas muito pouco que lhe posso retribuir em troca do seu encarceramento ponto final

travessão O senhor vai ser sujeito a uma terapia para recuperar esta sua ausência de sinais de pontuação ponto final Nós dirigimos esta comissão com o fito de impedir desvios na forma tradicional de escrever ponto final É uma ofensa a tudo o que se construiu ao longo de séculos na língua portuguesa ponto final Não concorda interrogação

Tentei argumentar desinteressadamente vírgula apenas queria que a Flor me perdoasse ponto Desesperava sempre quando eles pronunciavam o seu nome e apenas conseguia replicar que de alguma forma a ausência daquela mulher afectara a minha forma de escrever ponto final
Acobardei-me vírgula deixei-me corromper vírgula cedi à chantagem e à promessa de ver solta a mulher por quem sofri e não dormi nestes últimos meses vírgula tudo em troca de uma terapia com um psicólogo reticências

travessão Boa tarde senhor doutor ponto final
travessão Sente-se vírgula retorquiu secamente ponto final
travessão Faça o obséquio de desenhar um i invertido vírgula pediu-me estranhamente com toda a amabilidade ponto final

Depois de esboçado o desenho pareceu-me um ponto de exclamação ponto final

Iniciei assim a minha recuperação exclamação

sexta-feira, 27 de março de 2009

Desavinhar

Deitei à terra a última semente.
Era preciso comer a carestia.
O mundo desejou ser crente,
Porque Deus não aparecia.

Reguei a flor, cuidei do bago.
Cerquei a vinha de tod` agrura.
Senti na boca um sabor amargo:
Morres-me, pouco ou nada perdura.

Chegou o dia, a festa da colheita.
O Homem desacreditado louvou:
"Bendito seja o Senhor que a criou".

Ao longe, curava esta doce maleita:
Árduo o trabalho de cultivar,
Simples o processo de desavinhar.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Versos Desgarrados

Os lábios sentiram-lhe o corpo deitado,
Os outros dela esboçaram dois sorrisos:
Um, pela quebra do silêncio alcançado,
Outro, pelo prazer dos sentidos.

A promessa estava enclausurada,
A sete mil chaves naquela cama.
E nada em forma de palavra inacabada
Destruiria a rítmica de quem ama,

Ou quer ou deseja loucamente…
Dois versos desgarrados em paixão,
A declamar o que se sente.

E os corpos entrelaçados na união,
Exprimiram as vogais e as consoantes.
Foram poetas por breves instantes!

sábado, 21 de março de 2009

In Memoriam

Era uma vez, diz a mãe ao filho,
Em jeito de conto prometido.
Embalado no seu regaço, ouvia com brilho,
A vida de um homem desconhecido

Era uma vez, sussurava com ternura,
A música de um amor ancestral.
Mas o conto era seiva que perdura,
No âmago do menino paternal.

Era uma vez, acarinhava com firmeza,
E o menino ouvia-a encantado,
Sobre o Homem que a memória apagou.

Que grandioso legado, afirmou com certeza:
A honra do nome do pai conquistado,
Lacrado no último beijo que lhe deixou.